O
amor é incerto como um carreiro de formigas, disse o meu amigo, um pseudo-estoico
desconhecedor absoluto da filosofia do Barão de Teive.
O amor é o que é, argui
negligentemente.
O meu amigo lançou-me um olhar lívido
e impassível, coçou uma borbulha ao lado do nariz sob o rebordo da lente dos
óculos, e concretizou:
Ela pensava ter-me agarrado pela trela
como um caniche de pelo hirsuto, mas a mim nenhuma me prende: nem pelo sexo,
nem pelo estômago… por coisa nenhuma.
Aguentei a tirada. Eu estava farto
de debater o seu niilismo em matéria de amor e casamento. Anos de conversas, de
conselhos, falando-lhe de entrega e partilha, de vida a dois e de felicidade no
lar não o haviam demovido dos seus abstrusos princípios. Cheguei a oferecer-lhe
uma edição barata da Carta de Guia de
Casados, de D. Francisco Manuel de Melo, e outra luxuosa de A Vida Sexual dos Solteiros e Casados, do médico e sacerdote João Mohana, pensando
poder estimular-lhe uma inclinação para o compromisso. Apresentei-lhe mulheres,
levei-o a bailes, inscrevi-o em sítios de relacionamentos amorosos da Internet
– mas ele, nada.
Andávamos sempre juntos – eu, a
minha mulher e ele – até a coisa começar a ser vista e comentada como um “ménage
à trois”, o que me desgostou profundamente. Foi aí, nesse aperto de ordem ética
e moral, que o atirei para os braços de Adélia, uma descasada de trinta e tal
anos, engolidora de homens, mas com sinais confortantes de alguma propensão para
a estabilidade afetiva.
Adélia prezava muito o social. Ia a
exposições de pintura, a lançamentos de livros, frequentava os eventos
anunciados no “facebook” com a mesma seriedade de quem marca presença em missas
do sétimo dia ou em “raves” de jovens com “disk jockeys” da moda. Adélia fruía
o efémero superior e dava nota disso nas redes sociais. Punha comentários e
“likes” nas páginas de personalidades com 4999 seguidores e inscrevia como
amigos figuras gradas do cinema, do jornalismo e das artes. Era o contrário feliz
da não-inscrição postulada pelo filósofo José Gil.
Devo dizer que, em tempos, estive
apaixonado por Adélia, embora nunca tenhamos chegado a vias de facto. Ela
achava-me piada, brincava comigo e até tentava fazer-me ciúmes, mas, no fundo,
sabia que eu não era homem que pudesse servir-lhe. Desisti dos seus perfumes de
maçã e ervas depois de um jantar de “sushi” acompanhado de saquê. A partir daí,
passámos a falar de dois em dois meses, por telefone, e a enchermo-nos
reciprocamente de “likes” nas mensagens lançadas no “facebook”.
Conheço uma gaja que está bem para
ti, disse ao meu amigo. Deixa lá essas merdas de estoico-epicurista, ó pá, e
mete a mão na massa, que para estupidez já chega o “Soneto de Onan”, de José
Régio, Sim!, só a mim me entrego e me
possuo, / Porque eu me basto para achar o mundo!
O meu amigo foi conhecer Adélia num
restaurante fino e a coisa pegou. Fiquei feliz por ele e por ela. Bem, para ser
sincero senti uma certa dor de corno: Adélia não me dera hipóteses e já se
agradava, assim às primeiras, do meu amigo especioso.
Quando dei a novidade à minha
mulher, vi-lhe no rosto uma sombra de contrariedade. Acabava desta forma o
nosso companheirismo triásico, as noites passadas em discotecas com a sua
cabeça tanto assentando no meu ombro, como os seus seios roçando sem maldade
pelos braços dele.
Sosseguei-a. Continuaríamos a ser
amigos, agora os dois casais, cada um com a sua, não viessem as línguas
ordinárias badalar “foursomes” e orgias, seríamos superiores a isso. Mas Adélia
nunca se aproximou de nós. Durante vários meses deixei de ver o meu amigo,
experienciando, julgava eu, as alegrias gozosas da vida de casal. Quando finalmente
o consegui apanhar para uma conversa é que soube a verdade. Ou seja, meia verdade,
porque a outra metade foi-me contada por Adélia. Tive de juntar as duas partes
para ter a peça completa, verso e anverso, positivo e negativo, afirmação e
contraditório.
Segundo o meu amigo, Adélia era
dominadora, ninfomaníaca e dada a manias de grandeza. De acordo com Adélia, o meu
amigo era vulgar, de relacionamento difícil e muito mau na cama.
Tive pena pelos dois, sou uma pessoa
de boa índole. Contei à minha mulher e um brilho novo surgiu-lhe nos olhos.
Depois disse-me muito mal de Adélia, com quem nunca simpatizara, e concordou
ser o meu amigo, de facto, de uma simplicidade comovente e pouco dado a
convivências em sociedade. Não aceitou, porém, que fosse mau na cama, isso seria
uma calúnia de Adélia. De seguida fez-se muito vermelha, e esta sua reação
tomou-me por uns instantes o pensamento.
Não voltámos a falar de Adélia e, para esquecermos o triste
caso do meu amigo, combinámos uma ida ao cinema no fim de semana seguinte. Os
três, como antigamente.
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