Não é que eu
não gostasse das pernas dela, ou dos olhos, ou dos dentinhos ralos com que me
mordia as orelhas quando repousávamos depois das cansativas sessões de cama. A bem dizer, eu gostava da maior parte dos
seus atributos físicos: os seios pequenos como limões; o seu ventre liso lavrado
por uma tatuagem esquálida; os dedos finos, de unhas brilhantes sem pintura; as
mãos que sabiam agarrar e se faziam sentir.
A minha
rapariga era bonita e agradável, até sensual, mas uma coisa me tirava toda a
alegria da relação: a sua voz.
A princípio
não me dei conta disso. Embora nos amássemos muito, falávamos pouco. A minha rapariga era operária de fábrica, não
sabia conversar de política, nem de economia ou literatura, e eu não me
interessava pela banalidade do seu quotidiano fabril. O que falávamos, alto e
bom som, era a linguagem dos corpos e, mesmo assim, ela mais do que eu, pois para
ser inteiramente franco, devo dizer que, como homem, sou um bocado fraco na
cama.
A voz da
minha rapariga, voltemos ao assunto, era de uma rouquidão que fazia lembrar um
produto transgénico obtido por mistura das vozes distorcidas de Janis Joplin e
Bruce Springsteen. Não me perguntem o que quero dizer com isto que não sei
explicar. Era de uma rouquidão amoral, obscena e ao mesmo tempo aterrorizante.
Ela não podia pronunciar nenhuma dessas palavras ou locuções que costumam sair
da boca das mulheres quando estão no melhor da festa que logo eu me atrofiava todo
e já não conseguia chegar a lado nenhum. As vergonhas por que então passei!
O caso
pareceu-me de certa gravidade e, sem ela saber, consultei um curandeiro que me
receitou pau-de-cabinda e algodão para os ouvidos. O homem interessou-se pelo
problema da minha rapariga (ou seria meu?) e disse-me que lhe recomendasse uma
infusão de coentros e flor de laranjeira para gargarejar duas vezes ao dia. Que
a rouquidão passaria.
Fui para ela
mais animado e toquei-lhe no assunto. O que eu fui fazer! A minha rapariga, até
aí tão submissa, tão amiga, levantou-se alterada e começou a dizer que já
desconfiava que eu não era homem para ela, que não viesse com desculpas para a
minha imperícia e frustrações sexuais, que eu tinha a cabeça cheia de romances
e outras porcarias dos livros e da Internet e que o que devia fazer era vergar
a mola como ela, e não andar o dia inteiro a puxar o lustro às cadeiras das
bibliotecas, a escrevinhar coisas parvas, que ela já tinha lido uma vez e não
achara ponta por onde se pudesse pegar. E, estocada final, que já lhe dissera um
colega do sindicato, amigo do peito, que a nossa relação era de um
interclassismo estéril, antinatural, coisa que ela não percebeu mas que lhe
pareceu fazer sentido.
Até me custa
a continuar a narração. Ainda andei uns dias, tem-te não caias, a ver se
compunha o ramalhete, a mandar-lhe flores e versos lúbricos, mas a minha
rapariga não voltou a ser mesma. Trocou-me ao fim de umas semanas por um
brasileiro bem apessoado que fazia entregas de pizzas numa loja do bairro.
Hoje, na mais
completa solidão, não deixo de pensar na importância errada que dei à voz
daquela que foi a minha rapariga, a forma como essa obsessão arruinou a nossa
relação amorosa. Teria ela, de facto, essa voz rouca, indefinível e tormentosa,
ou não teria sido tudo uma falsa percepção, uma forma inconsciente de eu
mascarar a minha incapacidade para sentir e amar de forma plena?
Ontem mesmo,
e daí a razão deste escrito, encontrei a minha antiga rapariga na mercearia da
rua a comprar uns morangos para a sobremesa do jantar. Talvez se preparasse
para uma refeição à luz das velas com o citado brasileiro entregador de pizzas.
Trocámos umas breves palavras e, coisa estranha, não lhe senti a rouquidão da
voz, mas, pelo contrário, tudo o que lhe saía da boca eram palavras límpidas e
harmoniosas, boas de ouvir e tomar.
Verti uma lágrima e, uma vez mais na vida, tive pena de ter perdido um
amor.
3 comentários:
Muito bem :)
Gostei, sim senhor. Temos escritor.
Escrevedor, meus amigos.
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