quarta-feira, maio 13, 2015

HISTÓRIAS DE AMORES E DESAMORES - A MINHA ANTIGA RAPARIGA


Não é que eu não gostasse das pernas dela, ou dos olhos, ou dos dentinhos ralos com que me mordia as orelhas quando repousávamos depois das cansativas sessões de cama.  A bem dizer, eu gostava da maior parte dos seus atributos físicos: os seios pequenos como limões; o seu ventre liso lavrado por uma tatuagem esquálida; os dedos finos, de unhas brilhantes sem pintura; as mãos que sabiam agarrar e se faziam sentir.
A minha rapariga era bonita e agradável, até sensual, mas uma coisa me tirava toda a alegria da relação: a sua voz.
A princípio não me dei conta disso. Embora nos amássemos muito, falávamos pouco.  A minha rapariga era operária de fábrica, não sabia conversar de política, nem de economia ou literatura, e eu não me interessava pela banalidade do seu quotidiano fabril. O que falávamos, alto e bom som, era a linguagem dos corpos e, mesmo assim, ela mais do que eu, pois para ser inteiramente franco, devo dizer que, como homem, sou um bocado fraco na cama.
A voz da minha rapariga, voltemos ao assunto, era de uma rouquidão que fazia lembrar um produto transgénico obtido por mistura das vozes distorcidas de Janis Joplin e Bruce Springsteen. Não me perguntem o que quero dizer com isto que não sei explicar. Era de uma rouquidão amoral, obscena e ao mesmo tempo aterrorizante. Ela não podia pronunciar nenhuma dessas palavras ou locuções que costumam sair da boca das mulheres quando estão no melhor da festa que logo eu me atrofiava todo e já não conseguia chegar a lado nenhum. As vergonhas por que então passei!
O caso pareceu-me de certa gravidade e, sem ela saber, consultei um curandeiro que me receitou pau-de-cabinda e algodão para os ouvidos. O homem interessou-se pelo problema da minha rapariga (ou seria meu?) e disse-me que lhe recomendasse uma infusão de coentros e flor de laranjeira para gargarejar duas vezes ao dia. Que a rouquidão passaria.
Fui para ela mais animado e toquei-lhe no assunto. O que eu fui fazer! A minha rapariga, até aí tão submissa, tão amiga, levantou-se alterada e começou a dizer que já desconfiava que eu não era homem para ela, que não viesse com desculpas para a minha imperícia e frustrações sexuais, que eu tinha a cabeça cheia de romances e outras porcarias dos livros e da Internet e que o que devia fazer era vergar a mola como ela, e não andar o dia inteiro a puxar o lustro às cadeiras das bibliotecas, a escrevinhar coisas parvas, que ela já tinha lido uma vez e não achara ponta por onde se pudesse pegar. E, estocada final, que já lhe dissera um colega do sindicato, amigo do peito, que a nossa relação era de um interclassismo estéril, antinatural, coisa que ela não percebeu mas que lhe pareceu fazer sentido.
Até me custa a continuar a narração. Ainda andei uns dias, tem-te não caias, a ver se compunha o ramalhete, a mandar-lhe flores e versos lúbricos, mas a minha rapariga não voltou a ser mesma. Trocou-me ao fim de umas semanas por um brasileiro bem apessoado que fazia entregas de pizzas numa loja do bairro.
Hoje, na mais completa solidão, não deixo de pensar na importância errada que dei à voz daquela que foi a minha rapariga, a forma como essa obsessão arruinou a nossa relação amorosa. Teria ela, de facto, essa voz rouca, indefinível e tormentosa, ou não teria sido tudo uma falsa percepção, uma forma inconsciente de eu mascarar a minha incapacidade para sentir e amar de forma plena?
Ontem mesmo, e daí a razão deste escrito, encontrei a minha antiga rapariga na mercearia da rua a comprar uns morangos para a sobremesa do jantar. Talvez se preparasse para uma refeição à luz das velas com o citado brasileiro entregador de pizzas. Trocámos umas breves palavras e, coisa estranha, não lhe senti a rouquidão da voz, mas, pelo contrário, tudo o que lhe saía da boca eram palavras límpidas e harmoniosas, boas de ouvir e tomar.  Verti uma lágrima e, uma vez mais na vida, tive pena de ter perdido um amor.

3 comentários:

Ricardo António Alves disse...

Muito bem :)

Joca disse...

Gostei, sim senhor. Temos escritor.

Manuel Nunes disse...

Escrevedor, meus amigos.