Conheci primeiro Odette de Crécy, há tanto
tempo que não consigo dizer o ano ou o mês em que tal sucedeu. Vinha vestida,
pareceu-me, à moda da Belle Époque, e
foi como se assistisse ao nascimento de Vénus, adulta e nua como naquele quadro
célebre de Botticelli. Depois chegou Natasha Rostova e só mais tarde, muito
mais tarde, Elizabeth Bennet e Maria Monforte. Com esta tive uma relação duradoura,
feita de olhares lânguidos, sempre à espera de ver aparecer um príncipe
italiano que ma roubasse.
Frequentei o café durante muito tempo.
Ali sentado na mesa do canto, fiz mais viagens que o Gulliver de Swift, conheci
mais mulheres que o burlador de Sevilha. A verdade, porém, é que nunca chegava à
fala com elas. Por timidez ou qualquer outra razão mais ou menos estúpida, não
me sentia à vontade com o sexo oposto. Elas
entravam, eu olhava-as, dava-lhes um nome de ressonâncias artísticas ou
literárias, e isso satisfazia-me. Foi assim durante muitos anos, eu era (e sou
ainda, creio) uma espécie de onanista da imaginação.
O caso mudou de figura com uma
rapariga que passou a estudar no café aí por Março ou Abril do ano
passado. Era época de frequências. Trazia os seus livros e cadernos, sentava-se
na mesa ao lado da minha e vestia sempre a mesma blusa. Creio que teria várias
peças semelhantes, variando apenas em um ou outro detalhe do bordado, porque as
blusas estavam sempre impecavelmente limpas e, parecendo a mesma, se calhar nenhuma seria igual à anterior.
O seu nome descobri-o com facilidade,
estava escrito na capa dum caderno, sendo esse o dado que, para mim, a tornou
diferente das outras. Eu sabia-lhe o nome, não tinha de o inventar.
Um dia dirigi-lhe a
palavra. Perguntei-lhe que tal iam os estudos – que, pelos livros que via sobre a mesa, eram de História de Arte –, que não queria atrapalhá-la, mas que
lhe desejava sorte e sucesso nas avaliações.
A rapariga, que se chamava Sandra,
deve ter achado a minha conversa fora do comum. Olhou-me com um ar de vigilante
de museu, igual ao que se tem quando um visitante se aproxima muito de uma obra
exposta, ameaçando tocar-lhe, e agradeceu delicadamente. Eu compreendera que a
minha abordagem não tinha sido perfeita, talvez pouco natural e com um palavreado
fora de moda, mas fiquei satisfeito por ter sido um primeiro esforço de
comunicação.
Passei a falar-lhe sempre que se
sentava na mesa ao lado da minha. Para a impressionar, referia-lhe Courbet e o Enterro em Ornans, Watteau e A Loja de Gersaint, grandes artistas e grandes obras, arengas que ela
acolhia conformadamente, suspendendo o trabalho à espera que eu
acabasse para poder continuar.
Andei nisto uns dias até que a
rapariga passou a sentar-se em mesas cada vez mais afastadas da minha, lá para
o fundo do café, atrás de uma coluna que nem dava para a ver. A verdade é que a
minha conversa não atava nem desatava. Era, reconheço-o agora, do tipo “nem o
pai morre nem a gente almoça”. As mulheres – eu não sabia, mas disse-me um
antigo colega com quem agora costumo encontrar-me –, gostam é de homens do tipo
“tiro e queda”, sem papas na língua, “Queres ou não queres? É em minha casa ou
na tua?”
Graças às lições deste meu antigo colega, aprendi bastante. Fiquei mais preparado para enfrentar os desafios
do mundo, não vivendo tanto da imaginação e dos seus floreados.
Esta semana, ao fim de algum tempo,
voltei ao café. Sentei-me na mesa do costume e, coisa que já não esperava, tive
uma recaída. Bebia uma água com gás quando vi entrar uma mulher que de
imediato associei à Victorine Meurent do Almoço
sobre a Relva: o mesmo cabelo, o mesmo sorriso entre o cândido e o perverso,
as pernas e os seios igualmente desafiantes. Ainda aturdido, deitei os olhos
para as mesas do fundo e lá estava, numa delas, a estudante de História de
Arte. Só que já não era a Sandra que eu conhecera e com quem chegara a falar, mas
a jovem mulher pintada por Matisse com uma blusa romena, a mesma que Sandra
sempre trazia como se não tivesse mais nada para vestir.
Já decidi: não voltarei ao café tão
cedo. O meu antigo colega apresentou-me uma jovem que trabalha como auxiliar de
cozinha num restaurante do bairro. Talvez com ela, na simplicidade das nossas
conversas, eu consiga esquecer a blusa romena, as outras mulheres, e acalmar o tormento da minha imaginação.
Auxiliar de cozinha? Mas como se
chama a auxiliar da cozinheira
Françoise no romance Do Lado de Swann?
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