quarta-feira, outubro 07, 2020

O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS (2020), DE JOÃO BOTELHO

Vi hoje no cinema Ideal. Seria difícil a João Botelho entrar na alma do livro. Como intertexto, o filme é obra razoavelmente conseguida, apesar de algumas anomalias de casting: Chico Diaz, no papel de Ricardo Reis, é um actor quinze anos mais velho do que a personagem interpretada; Luís Lima Barreto, por sua vez, surge demasiado carnal para a condição fantasmática de Fernando Pessoa. Bem, muito bem, Catarina Wallenstein a quem parcialmente se aplica o que no livro é dito a respeito de Lídia: «mulher feita e bem feita, morena portuguesa, mais para o baixo que para o alto».

A força do filme está nas vertentes amorosa e política do romance. Em termos literários, mas com peso menor, há os diálogos entre Fernando Pessoa e Ricardo Reis: o desdobramento do eu, o fingimento poético e o classicismo do médico-poeta autor de odes sáficas e alcaicas.

Assiste-se à transformação política de Ricardo Reis. O estoico-epicurista que escrevera «sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo», o monárquico sem rei indiferente à opressão e à guerra como os jogadores de xadrez do seu poema («Tudo o que é sério pouco nos importe»), indigna-se com a prepotência da polícia política que o interroga e a violência do comício fascista de que se retira.

Esta nova atitude perante o “espectáculo do mundo” (crescimento do nazismo e do fascismo na Europa, triunfo do franquismo em Espanha), é discordante com o seu conservadorismo moral e de classe (indecisão sobre o perfilhamento do filho seu e de Lídia e o juízo da inconveniência de um casamento com uma mulher do povo).

Tentarei voltar ao filme para fixar alguns aspectos que me poderão ter escapado.


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