MÁSCARAS
Ela usava máscaras a condizerem com o
padrão dos vestidos e a cor dos sapatos. Acomodava-as numa gaveta da cómoda ao
lado de sutiãs, meias de vidro e cuecas de renda. Antes de escolher uma para
sair, soltava os dedos sobre a textura dos panos e a flexibilidade dos
elásticos, correndo-as de uma ponta à outra como quem toca em alguma coisa
realmente querida e desejável.
Assim, num momento de pachorra deixou
no mural do facebook a seguinte mensagem:
«Eu uso máscara em público e fico a
dois metros de distância. Não, não
"vivo com medo" do vírus, só quero fazer parte da solução e não do
problema. Não sinto que o "governo me controle", sinto que sou uma
adulta contribuindo para a sociedade. O mundo não gira em torno de mim. Usar uma máscara e estar a dois metros de distância não
me deixa fraca, assustada, estúpida ou mesmo "controlada", mas
atenciosa e respeitosa», etc.
Fique claro que
o texto não saíra da sua imaginação – aliás, o que de menos há naquela rede
social é imaginação –, tratava-se de uma “corrente” para copiar e colar, inventada
não se sabe por quem, mas com assinalado êxito em meio de acefalia dominante.
Choveram os
likes e os comentários dos amigos prodigamente simpáticos. Um comentário,
porém, prontamente apagado e denunciado, era de índole maliciosa, troçando do “medo
do vírus” e da suposta pretensão do governo em impor as máscaras para “controlar”,
entregando-se a outras considerações que tinham tanto de impertinente como de
ordinário.
O namorado, um
macho ciumento e feroz, advertiu-a: É o que dá tanta conversa no facebook, para
controlar os cidadãos o governo já tem o Ministério das Finanças e a polícia, quer
lá saber das máscaras, e quanto a isso de não teres medo do vírus, só o não tem
quem é estúpido ou mal esclarecido, vais mas é apagar as baboseiras que
escreveste e aproveita a embalagem para dares menos trela a uns quantos tipos
que andam por lá a fazer-te olhinhos e a enviar-te mensagens privadas, olha que
já m´estou a chatear com estas porras todas.
Ela apagou, mas
ficou amuada durante uns dias. Aliás, deixou de pôr likes e comentários nas
mensagens dos amigos, tanto daqueles que conhecia como dos que nunca vira, apanhados
ali na rede sem engodo nem isco, mil seiscentos e vinte e sete ao todo.
Coisa surpreendente,
deixou de usar as belas máscaras de pano e passou a sair com as vulgarmente
designadas como cirúrgicas, uma pobreza de estilo naquele falso tecido fininho
de cor azul bebé sem a espessura protectora das outras. Fora uma imposição do
ciumento, porque as máscaras que ela usava chamavam muito a atenção e os homens
mais atrevidos paravam a olhar com uma persistência irritante tentando imaginar
os lábios deliciosos que se escondiam sob os seus olhos de sílfide. É sabido
que o que está escondido mais encoraja as pulsões da líbido.
O pior foi ter começado
a sentir-se insegura com as máscaras cirúrgicas, passando a viver com medo do
vírus. Resolveu pedir ao namorado que lhe arranjasse uma viseira bonita capaz
de reforçar a protecção, uma viseira de policarbonato incolor, com fita
elástica colorida e placa de espuma na zona da testa. Se há que usar estas
coisas, pensava, ao menos que se faça com estilo.
E na sensaboria
dos dias estranhos, com o vírus à solta e o namorado à perna, já não se
importava de se sentir controlada, porque um namorado não é o governo,
aguenta-se bem, mau é viver com medo do vírus, sentir-se fraca, assustada ou
estúpida, e isso, em definitivo, é que ela não queria mesmo. Ah, tão atenciosa e respeitosa que era, se ao menos pudesse voltar às belas máscaras de pano!
2 comentários:
A verdade é que hoje tive uma sensação mileumanoitesca ao cruzar-me com um máscara...
Extraordinário, meu caro, as minhas sensações com máscaras são muito básicas, como as "correntes" do feicebuque.
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