CAVALEIRO DA TRISTE FIGURA
Suportara o vexame dos dois metros de
distância, a opressão da máscara e das luvas, a medição diária das temperaturas
num velho termómetro de pôr sob o braço. Às vezes, vacilava-lhe a vista na
determinação do ponto da escala onde se detinha a fita de mercúrio. Nesses
segundos de incerteza, pensava que a natureza bondosa o abandonara, que o
líquido metálico já se estendia aos dígitos altos da casa dos trinta ou mesmo às
primícias dos quarenta. Finalmente, por uma particular inclinação do termómetro
conseguia fazer a leitura: abaixo dos trinta e sete, valor normal, e anotava-o alegremente
num bloco de folhas cinzentas com a indicação da data e da hora.
Ela via diariamente os valores que
ele lhe mostrava. Recomendava-lhe que não andasse de transportes públicos, que
usasse gel desinfectante e, sobretudo, não colhesse flores campestres para lhe
oferecer. A primavera explodia nos campos e nos jacarandás da cidade mas
minguava nos corações dos que não se podiam tocar. Dois metros de distância,
era o mínimo.
Foi assim durante oito semanas.
Depois veio um tempo em que já era permitido sair de casa, colher flores nos
jardins do campo e almoçar em restaurantes.
Não coabitamos, disse ela ao
empregado do restaurante da primeira vez que foram almoçar à beira-mar. Ficaram
sentados em mesas separadas, a conversa fluindo com intermitências lúgubres.
Para segurança de ambos, ela sugeriu-lhe
uma quarentena de catorze dias, findos os quais retomariam a vida a dois. Cada
um na sua casa, claro. E então foi o império do skype e do zoom, as
temperaturas anotadas diariamente, nervos e palpitações sob o riso mudo das
noites.
Quando chegou o grande dia, as roupas
voando na atmosfera cálida do quarto, ela, de súbito, estacou de terror. Uma
temperatura desmesurada irradiava do corpo dele em ondas de choque traiçoeiras
e más. Aplicou-lhe o termómetro digital com visor de cristal líquido e beep sonoro: trinta e sete e nove. Ele
ficou embaraçado e protestou, que a temperatura era o resultado da excitação
sexual, nada mais que isso, havia casos desses cientificamente demonstrados, mas
ela levou a coisa a sério e não o quis ouvir. Rebobinou o filme e a roupa
voltou a assentar-lhe no corpo anteriormente nu. Depois, tiveram uma conversa
ponderosa, de decisões determinantes: mais catorze dias de afastamento até que
a relação se revelasse inócua.
Tristeza das tristezas! Hoje quem o
quer ver é aí pelas ruas a moer a solidão descomunal. Traz a roupa suja, os
sapatos torcidos, os olhos pisados de mágoa sobre a cabeleira hirsuta que
insiste em fugir à tesoura do fígaro. De vez em quando telefonam-se, diálogos
sem sentimento, e nem sabe ao certo quanto tempo falta para cumprir os catorze
dias, se é que não passaram já sem que a interdição cruel tenha sido levantada.
É agora um destroço humano, apenas uma
ténue luz lhe alumia o fácies. A negligência da máscara caída sobre os queixos
faz lembrar a viseira móvel dum elmo medieval. Cavaleiro da triste figura apeado
do seu rocim, de lança frouxa e sem dama, cruzando-se com os monstros eólicos
da pandemia. Assim como anda, algum dia infecta-se de verdade e, pensa, se calhar
é isso mesmo que ela espera.
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