Giovanni Boccaccio (1313-1375) por Andrea del Castagno (c. 1450)
No Decameron, de Boccaccio, «cem novelas
que sete damas e três mancebos contaram em dez dias», é impossível não atentar no prefácio autoral e na conclusão da obra. No prefácio, a descrição
realista da peste que grassou em Florença de Março a Julho de 1348, o seu cortejo
de desgraças e a dissolução de costumes engendrada pelo espectro da morte
massiva. É nesse clima de terror que se imbrica a ficção dos dez jovens que se
fixam num palácio dos arredores da cidade e nele permanecem por dez dias
contando histórias uns aos outros para passar o tempo e esquecer o perigo que
os rodeia. O facto de estas sete mulheres da alta sociedade florentina serem
solteiras e fazerem-se acompanhar, três delas, dos seus pretendentes, traduz um
tipo de comportamento que desafia os princípios morais da sociedade ainda medieval.
Na conclusão, o autor discorre sobre o conteúdo das histórias narradas.
Dirigindo-se às leitoras, diz: «Algumas de vós dirão talvez que ao escrever as
minhas histórias dei rédea solta à licença; que, por exemplo, fiz escutar e dizer
às damas o que não é próprio para os ouvidos ou para a boca de uma mulher
honesta.» Perguntando de seguida: «Mas serei eu mais culpado por tê-las escrito
do que os homens e as mulheres que repetem durante todo o dia buraco e cavilha,
pau e boceta, salsicha e mortadela, e todos buraco e cavilha, pau e boceta,
salsicha e mortadela, e todas as locuções da mesma espécie?» A liberdade e o
realismo narrativos das histórias configuram, em relação ao autor e segundo a
introdução de Urbano Tavares Rodrigues (Círculo de Leitores), uma demonstração do seu «amor pela vida
e o seu ideal de ventura na terra, tão oposto a toda a literatura teocrática
medieval.»
* Título de um ensaio de George Steiner.
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