Não procures nem creias: tudo é oculto.
(Verso do poema “Natal” de Fernando Pessoa)
Numa noite do passado mês de Agosto estive numa vivenda de Sintra onde se realizam sessões de espiritismo. A vivenda é propriedade duma senhora inglesa que se dedica a estes jogos do oculto, sendo frequentada por médiuns, magos e outros agentes do sobrenatural. Por mim, nunca me apanhariam em tal carrossel, tendo aceitado ir apenas por insistência da minha professora S., investigadora da vertente esotérica da obra de Fernando Pessoa, que ali comparecia em demanda de subsídios para o seu trabalho de pós-doutoramento.
Pelo que nos foi dito, esperava-se naquela noite chegar à fala com o espírito de Henry More, filósofo inglês do século dezassete com quem o autor de “Mensagem” se correspondeu em certo período da vida, embora não estivesse posta de parte a hipótese de o espírito múltiplo de Pessoa, ele mesmo, poder também ser chamado ao diálogo mediúnico. A minha professora não acreditava cegamente nestes intercâmbios com o além, mas animava-a uma curiosidade intelectual, desejosa de ver até onde as coisas poderiam ir.
Chegámos à dita vivenda pelas onze horas da noite, depois de nos termos confortado com queijadas e chá num conhecido estabelecimento local que tem o nome dum pássaro. O ambiente estava carregado dos mais esquisitos cheiros, sentia-se um hálito do além, enjoativo e mágico. Um interlocutor astral praticava escrita automática, enchendo cadernos de papel quadriculado de copiosas frases garatujadas. Confesso que me intimidei com o aparato dos móveis, com a penumbra que descia pelas paredes cinzentas, com a palidez de certos rostos que vagueavam na casa.
Pouco mais vi para além do que acabo de relatar, tendo ficado grande parte do tempo numa pequena sala pesadamente mobilada, aguardando sentado o fim da sessão mediúnica a que a minha professora assistia.
Foi então que se abeirou de mim um jovem de calças de ganga e camisa às florinhas verdes e amarelas que se apresentou como mago, seguidor das ideias de Aleister Crowley. Sempre imaginara os magos com um trajo formal, mas, pelos vistos, até nesta classe se têm registado grandes alterações na maneira de vestir… Sentou-se ao meu lado e disse-me: “Dá-me os teus braços”. Embora estranhando o pedido, estendi-os na sua direcção. Ele segurou-os com os dedos na região dos pulsos, como se aferisse o ritmo cardíaco, fechando os olhos e sibilando impercebíveis vocábulos. E perguntou, ao fim de algum tempo, embora eu sentisse que não esperava qualquer resposta da minha parte: “Como está a tua vida conjugal?”. Fiquei calado. Então acrescentou: “Há uma mulher do Norte, amiga da metade de ti, que te traz sob o efeito de uma magia de afastamento”. Não sei se me deixei rir ou se me pus ainda mais sério. O mago, imperturbável, concluiu: “Interesses obscuros, inconfessados desígnios”. Posto o que girou para outra sala, deixando-me entregue ao seu enigmático oráculo.
A noite acabou sem mais sobressaltos. A minha professora saiu da sessão de espiritismo de faces afogueadas, vindo-me à ideia a pobre ceifeira do poema de Pessoa. Eu sempre imaginei as ceifeiras de faces afogueadas, ceifando à calma, embora a do poema se limite a cantar, na sua alegre e anónima viuvez, nada dizendo o poeta sobre as suas faces. Deixámos a vivenda silenciosos, sem comentarmos as incidências da noite. Levei-a a casa, onde, segundo me disse, o marido a esperava com ansiedade.
Hoje telefonei-lhe a contar umas certas coisas que me aconteceram, justificando-me do atraso do meu trabalho, um capítulo da tese que prometera entregar-lhe e que ainda não ultrapassara a dimensão de umas escassas páginas. Falei-lhe pela primeira vez da magia de afastamento descoberta pelo mago, a qual afinal dera resultado, e da mulher do Norte que eu identificava com alguém que conhecia como frequentadora de bruxas e videntes, leitora de livros herméticos e de outras inquietantes prosas. Então contou-me a minha professora que, naquela noite, também o mago lhe vaticinara um preocupante sucesso que tinha acabado de concretizar-se. Suspirou, e disse-me: “Sabes, Manuel, nós não acreditamos em bruxas, mas lá que as há, há”.
Numa noite do passado mês de Agosto estive numa vivenda de Sintra onde se realizam sessões de espiritismo. A vivenda é propriedade duma senhora inglesa que se dedica a estes jogos do oculto, sendo frequentada por médiuns, magos e outros agentes do sobrenatural. Por mim, nunca me apanhariam em tal carrossel, tendo aceitado ir apenas por insistência da minha professora S., investigadora da vertente esotérica da obra de Fernando Pessoa, que ali comparecia em demanda de subsídios para o seu trabalho de pós-doutoramento.
Pelo que nos foi dito, esperava-se naquela noite chegar à fala com o espírito de Henry More, filósofo inglês do século dezassete com quem o autor de “Mensagem” se correspondeu em certo período da vida, embora não estivesse posta de parte a hipótese de o espírito múltiplo de Pessoa, ele mesmo, poder também ser chamado ao diálogo mediúnico. A minha professora não acreditava cegamente nestes intercâmbios com o além, mas animava-a uma curiosidade intelectual, desejosa de ver até onde as coisas poderiam ir.
Chegámos à dita vivenda pelas onze horas da noite, depois de nos termos confortado com queijadas e chá num conhecido estabelecimento local que tem o nome dum pássaro. O ambiente estava carregado dos mais esquisitos cheiros, sentia-se um hálito do além, enjoativo e mágico. Um interlocutor astral praticava escrita automática, enchendo cadernos de papel quadriculado de copiosas frases garatujadas. Confesso que me intimidei com o aparato dos móveis, com a penumbra que descia pelas paredes cinzentas, com a palidez de certos rostos que vagueavam na casa.
Pouco mais vi para além do que acabo de relatar, tendo ficado grande parte do tempo numa pequena sala pesadamente mobilada, aguardando sentado o fim da sessão mediúnica a que a minha professora assistia.
Foi então que se abeirou de mim um jovem de calças de ganga e camisa às florinhas verdes e amarelas que se apresentou como mago, seguidor das ideias de Aleister Crowley. Sempre imaginara os magos com um trajo formal, mas, pelos vistos, até nesta classe se têm registado grandes alterações na maneira de vestir… Sentou-se ao meu lado e disse-me: “Dá-me os teus braços”. Embora estranhando o pedido, estendi-os na sua direcção. Ele segurou-os com os dedos na região dos pulsos, como se aferisse o ritmo cardíaco, fechando os olhos e sibilando impercebíveis vocábulos. E perguntou, ao fim de algum tempo, embora eu sentisse que não esperava qualquer resposta da minha parte: “Como está a tua vida conjugal?”. Fiquei calado. Então acrescentou: “Há uma mulher do Norte, amiga da metade de ti, que te traz sob o efeito de uma magia de afastamento”. Não sei se me deixei rir ou se me pus ainda mais sério. O mago, imperturbável, concluiu: “Interesses obscuros, inconfessados desígnios”. Posto o que girou para outra sala, deixando-me entregue ao seu enigmático oráculo.
A noite acabou sem mais sobressaltos. A minha professora saiu da sessão de espiritismo de faces afogueadas, vindo-me à ideia a pobre ceifeira do poema de Pessoa. Eu sempre imaginei as ceifeiras de faces afogueadas, ceifando à calma, embora a do poema se limite a cantar, na sua alegre e anónima viuvez, nada dizendo o poeta sobre as suas faces. Deixámos a vivenda silenciosos, sem comentarmos as incidências da noite. Levei-a a casa, onde, segundo me disse, o marido a esperava com ansiedade.
Hoje telefonei-lhe a contar umas certas coisas que me aconteceram, justificando-me do atraso do meu trabalho, um capítulo da tese que prometera entregar-lhe e que ainda não ultrapassara a dimensão de umas escassas páginas. Falei-lhe pela primeira vez da magia de afastamento descoberta pelo mago, a qual afinal dera resultado, e da mulher do Norte que eu identificava com alguém que conhecia como frequentadora de bruxas e videntes, leitora de livros herméticos e de outras inquietantes prosas. Então contou-me a minha professora que, naquela noite, também o mago lhe vaticinara um preocupante sucesso que tinha acabado de concretizar-se. Suspirou, e disse-me: “Sabes, Manuel, nós não acreditamos em bruxas, mas lá que as há, há”.
3 comentários:
O afastamento está ali sentado, reza um livro do Daniel Maia-Pinto Rodrigues.
O Pessoa acreditava nessas patranhas, e, como dizia o Sena, temos de levá-las a sério, se o quisermos perceber.
Ab.
É isso, Ricardo. E ainda mais qualquer coisa...
O Caeiro é que não acreditava e, coitado, deve-se ter removido no túmulo na passada sexta-feira (lol, como agora se diz). Bom cinema, lá pelo Estoril.
Abraço,
Lol!
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