A FÍMBRIA DO VESTIDO AZUL
O resultado do teste foi
inconclusivo, mas o alívio não veio. Continuava com a boca a saber a bafio, um odor que lhe subia às narinas igual ao que se sente quando se abre a
porta de um velho quarto há muito tempo fechado. De noite não conseguia descansar.
Crepúsculos roxos e amarelos atiravam-no para a cama onde o sono esquivo lhe moía
os ossos, o termómetro furtando-se a marcar a ponta de febre que lhe secava a
língua, e pela madrugada sonhava com mulheres nuas e tinha erecções violentas
como nos tempos distantes da juventude.
O médico colombiano que ouvia as
queixas soltou uma interjeição obscena em castelhano e mandou fazer segundo
teste.
Quando se dera o contágio? Ele
associava-o àquela manhã em que a mulher fizera a mala e saíra de casa. Descera
atrás dela até ao carro estacionado na
praceta a uns cinquenta metros do prédio. Implorara-lhe que não se fosse
embora, mas ela não o ouvira, estava decidida a romper com o confinamento a
dois. Com a precipitação de se furtar às súplicas, a fímbria do vestido azul ficara
entalada na porta do carro e ela tivera de voltar a abri-la quando já tinha
posto o motor a trabalhar. A última imagem que dela guardava era a da fímbria
do vestido azul, luzente e bela como o céu num dia bom. Encaminhara-se então para
o restaurante da rua em serviço takeaway,
a entrada trancada por uma mesa romba, e tomara um café em copo descartável. Fora
aí, pensava, que o vírus o fisgara, o danado esperando a vítima traiçoeiramente
refastelado no plástico do copo ou no papel do pacote de açúcar.
O médico colombiano deu uma
gargalhada sonora e anotou na ficha o resultado do segundo teste: não conclusivo.
As noites continuavam na mesma, o tropel de bacantes no alto das madrugadas, os
lençóis amanhecendo com manchas seminais de cor mostarda de Dijon.
Em desalento, tinha deixado de
cozinhar ou encomendar comida. A aparelhagem sonora da vizinha de baixo
desfiava em altos berros todos os fados da Rádio Amália. E passou a sonhar com
a vizinha da pior maneira: uma velha de carnes flácidas e seios descaídos com o
corpo esparramado sobre as suas carnes febris, os movimentos frenéticos ao som
do fado corrido, o suor atravessando-lhe a pele como uma lava impura.
O médico colombiano, leitor de
Gabriel García Márquez, lembrou-se de Florentino Ariza e dos grandes surtos
epidémicos da literatura. Receitou-lhe calmantes e paracetamol.
Então foi a própria mulher que lhe
passou a aparecer nos seus delírios oníricos. Passeava-se com outros homens, insinuante
e bela, deixava-se possuir por eles... Escreveu-lhe uma carta enviada por correio
electrónico, pedia-lhe que voltasse para ficar à sua cabeceira nos dias de vida
que lhe restavam.
Foi visitar o médico pela terceira
vez. Obrigaram-no a pôr uma máscara, apontaram-lhe à cabeça uma
pistola-termómetro e ordenaram-lhe abluções com gel desinfectante. O colombiano
tinha vários livros em cima da mesa: Camus, Saramago e outros notáveis descritores
de epidemias várias. Marcou-lhe novo teste para o dia seguinte.
De manhã, estava ainda na cama, viu
passar no corredor a fímbria do vestido azul. Não era sonho, teve a certeza
disso, porque de seguida ouviu descarregar o autoclismo da casa-de-banho e
correr as persianas das janelas da sala. Ela tinha voltado.
À tarde foi fazer o terceiro teste cujo resultado deu negativo.
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