sábado, janeiro 16, 2010

"O MUNDO À MINHA PROCURA"

O lugar da autobiografia tem sido encontrado num amplo campo interpretativo que vai da referencialidade à ficção. O autobiógrafo, investido da dupla condição de sujeito e objecto da escrita, tem que lidar com a memória (ou com aquilo que ficou dela) e com a selectividade (por vezes inconsciente) dos conteúdos de vida a transmitir. O arco do tempo da narrativa, arrancando as mais das vezes do período da infância, não dá azo a relatos fidedignos, a memórias nítidas, e o mais importante não é ser sincero, mas ter vontade de o ser ou simplesmente de parecer que o é.
Ruben A. (1920-1975) deixou uma bela autobiografia em três volumes: O Mundo à Minha Procura. No final do capítulo III do primeiro volume, escreveu: Não sei se foi o Adolfo Casais Monteiro que um dia, na aula de Português, me pediu para explicar um trecho dos Lusíadas depois de ter lido o meu exercício sobre o assassínio de Inês de Castro. O autor começa por não saber, por não ter a certeza, mas a partir desta dúvida inicial tudo se passa como se Adolfo Casais Monteiro tivesse sido efectivamente o professor do jovem Ruben Andresen Leitão naquele liceu do Porto onde fez os estudos secundários. O poeta da presença surge como o único docente a reconhecer no estudante refractário à Matemática e ao Latim o espírito arguto e o sentido trágico da vida e do amor que o levava a eleger o episódio de Inês de Castro como a passagem capital do grande poema camoniano. E termina assim: Passados poucos meses, a liberdade mental de Adolfo Casais Monteiro meteu-o na cadeia. Apareceu, então, como professor de Português o animal que regia Latim e que a meu respeito tinha a mais fraca das opiniões.
Aqui está um caso em que é justo que nos perguntemos se o texto é o reflexo da vida do autor ou se não será ele mesmo a instância criadora dessa vida, efabulação e reinvenção do eu autobiográfico?

sexta-feira, janeiro 01, 2010

A NÃO-INSCRIÇÃO

A leitura que tenho feito de algumas partes do livro Portugal Hoje – O Medo de Existir, do filósofo José Gil, fez-me levar os conceitos de inscrição e não-inscrição para o caso da juventude dos nossos dias.
José Gil fala em não-inscrição como uma ausência de desejo no sentido do real, um não acontecer, que no caso vertente pode muito bem estender-se a um não fazer, ou a um deixar que os outros façam – quase sempre os pais.
Também já passei pela juventude, e esta inclinação para reflectir sobre a actual pode parecer uma vontade de tecer comparações, de dizer: hoje é assim, mas antigamente era diferente, para melhor. Não vou por aí! Acho até, em certo sentido, que os jovens dos nossos dias são mais sensatos, mais solidários e até mais honestos do que os que se descobriram nos anos de ouro da vida durante as décadas de sessenta e setenta do século passado. Em que medida o ficaram a dever a esses que os precederam, os seus educadores, é matéria que parece não oferecer grandes dúvidas, pois alguma marca há-de deixar a educação, para bem ou para mal, acreditando porém que apesar da instabilidade que nos últimos trinta anos tem caracterizado a instituição familiar, a educação que demos aos nossos filhos foi, sempre generalizando, melhor e mais completa do que a que recebemos dos nossos pais.
A falta de inscrição no real, a acomodação à sombra da família, prolongando os anos que antecedem a entrada no mercado de trabalho, é uma resultante das dificuldades duma economia que não é geradora do pleno emprego e que muitas vezes só tem para oferecer a precariedade, mas também a expressão duma falta de desejo, ou de vontade que alguma coisa aconteça.
Um amigo que é director duma empresa de formação profissional, falava-me há tempos dum seu colaborador, um jovem licenciado em sociologia que estava a finalizar um mestrado e era o mais dedicado do departamento em termos profissionais. E acrescentou a seguinte informação: tinha-lhe morrido o pai entre os dezassete e os dezoito anos, quando ele se preparava para entrar na universidade, e esse acontecimento dramático tinha acabado com os dias plácidos da sua juventude. – É isso, às vezes é preciso sofrer um profundo revés, passar por uma grande infelicidade como a perda de um pai, importante no plano afectivo e igualmente decisivo em termos de subsistência, para que haja uma possibilidade de inscrição, uma vontade de agarrar pelos cornos o corpulento boi da vida.
São também às vezes acontecimentos capitais como uma doença ou um acidente que podem levar à reflexão e ao amadurecimento da consciência. Pascal falava daquilo a que chamou le bon usage des maladies, ou seja, aproveitar a inacção própria da doença, esse tempo só aparentemente infértil, para um exercício de introspecção e de descoberta de si – uma ruptura, afinal, com a não-inscrição.
E é assim que a partir de José Gil se geraram estas reflexões modestas, sonolentas e feitas um pouco ao correr das teclas. Há os que por esta altura de passagem abrem garrafas de champanhe. Como apesar de tudo há que ter esperança, esta é a minha única homenagem ao ano-novo.