A mulher caminhava com uma criança nos braços sobre as pedras brancas e cinzentas do leito seco de um rio. Fazia-o com naturalidade, sem esforço, como se andasse sobre chão direito ou de há muito estivesse habituada à irregularidade daquele piso. Não dava para perceber que traços seriam os do seu rosto: uma folha de sombra caía-lhe do lenço da cabeça até à altura da boca, e apenas a delicadeza do corpo, vestido de saia e blusa, permitia colher uma vaga promessa de beleza.
A criança estava nua. Teria um ano, ou pouco mais.
A espaços, abriam-se no leito do rio grandes poças de água, olhos imóveis de um caudal antigo aprisionados na solidão das pedras. A mulher metia-se nessas ruínas da corrente pela altura dos joelhos, arregaçando a saia que apertava entre as pernas para que não se molhasse, e passava a criança pela água numa espécie de banho lustral: primeiro a cabeça com o seu tufo de caracóis castanhos-claros, depois todo o corpo até aos pequenos pés que se agitavam incessantemente. Podia ver-se, então, que era um menino. A sua cara saía das águas de olhos bem abertos, sem nenhum sinal de aflição, antes sorrindo, e com a língua de um vermelho vivo lambia os lábios e a região à volta da boca até encostar o corpo húmido ao peito da mãe que logo o começava a beijar na cabeça e nos ombros.
De um momento para o outro, porém, o céu turvou-se de grandes nuvens que obliteraram a luz do sol. Um bando de aves de penas eriçadas e bicos carregados de dentes veio poisar sobre os seixos do leito e beber sofregamente nas poças de água. Ao levantar voo, deixou sobre a pedras uma massa de excrementos que atraiu uma nuvem densa de insectos, obrigando a mulher a tirar o lenço da cabeça e a proteger com ele o rosto do menino.
Foi neste compasso do sonho que Josué lhe viu a cara – era Salomé. E acordou sobressaltado.
Levantou-se indisposto e veio para a rua apanhar o ar da noite. Um morcego passou-lhe sobre a cabeça num arremedo inquietante de voo e, por momentos, pensou que ainda balançava nas asas do sonho, e que nada do que via – as fachadas das casas, as copas das árvores, os muros dos quintais –, nada daquilo era fisicamente real, palpável, apenas imagens da vida reflectidas no espelho da alma, prontas a desfazerem-se à primeira luz da madrugada. E lamentou que um homem novo como ele, na força da vida, ficasse sobressaltado perante um sonho que parecia não dispor dos ingredientes necessários para se tornar pesadelo. É certo que havia os estranhos pássaros e a nuvem de insectos, ambos de certa forma ameaçadores, mas o que mais o perturbara fora a visão daquela mulher – a sua – com uma criança de tenra idade nos braços.
Josué sempre deu grande valor aos sinais do inconsciente. Durante os meses em que Salomé esteve fora de casa, sonhou uma vez com um mar que avançava sobre a aldeia até a submergir por completo, afogando-se nele as pessoas e os animais. E via os corpos sem vida a boiarem à tona de água, a serem comidos por aves necrófagas que desciam dos céus e por peixes enormes que vinham do fundo das águas com a sua gula de morte. Sentiu-se mal. Ao acordar parecia estar no prelúdio de um ataque cardíaco. Nunca mais esqueceria esse sonho mau.
O que o sobressaltou naquela visão da mulher e da criança, foi talvez o elo que estabeleceu, ainda que inconscientemente, entre o contorno do sonho e o que lhe dissera Salomé quando regressou a casa: “O menino morreu”. Tinha sido há um ano, ou pouco mais. Ele ouviu e nem questionou o que ela lhe dizia, limitando-se a aceitá-la com uma bonomia inexplicável, mas que talvez resultasse de a imaginar arrependida, destroçada pela perda do filho e carente de um arrimo certo.
Josué sabe agora, com a certeza que só os sonhos podem dar, a razão por que todos os meses se ausenta de casa a sua mulher. Leu os sinais dessa revelação naquelas imagens do leito seco do rio. Mas essa certeza é, por enquanto, algo que não se atreve a dizer a si mesmo, uma verdade que ainda não tem palavras para falar, e que nem sabe quando terá, embora esteja seguro de que elas virão um dia, lentamente, como uma maré, subindo aos poucos os degraus da alma até a cobrir por completo, tal como no sonho mau o mar cobria toda a aldeia. Será apenas uma questão de tempo. Salomé continuará a dormir na sua cama, a tratar-lhe da roupa, a cozinhar para ele, a meter-lhe o almoço e a merenda na lancheira, a beijá-lo quando chega a casa ao fim do dia e a dar-lhe novas da mãe sempre que regressa das visitas que em cada mês lhe faz. Continuará a ser sua esposa dentro e fora de casa, ninguém na aldeia dará por nada, tudo parecerá natural, dentro das normais relações entre marido e mulher, até ao momento em que a verdade revelada ganhe o poder da voz. Talvez Josué não esteja absolutamente certo daquilo que sabe. Talvez prefira ir deixando correr o tempo para que se separe o azeite da água, o certo do errado, e poder aceitar o sonho em toda a sua plenitude. Porque se há quem acredite em sonhos, há também quem veja neles não mais que um pálido reflexo da vida, uma emergência confusa e inconsequente de sentimentos que estão dentro da alma e que só obliquamente ganham o direito de expressão. Que conclusões se extraem deles? O leito seco de um rio representa a corrente existencial onde o amor se perdeu. Mas a mulher com a criança nos braços, dando-lhe banho, cobrindo-a de beijos, é uma imagem viva e poderosa do amor. Há amores mais robustos que moram para sempre no coração dos homens, enquanto outros se extinguem a qualquer momento nos lances inesperados da vida.
A madrugada adiantava-se com o seu odor subtil de orvalho e ervas. Josué sentia-se transportado numa corrente que lhe ia restituindo a calma, uma onda que o levava para fora de si, até lugares distantes em inimagináveis patamares do tempo. Foi serenamente que entrou em casa. Deitou-se ao lado de Salomé que não dera sequer pela sua ausência, e, com os olhos ainda doridos da revelação, ousou dormir até ao romper do dia.
D.E.
A criança estava nua. Teria um ano, ou pouco mais.
A espaços, abriam-se no leito do rio grandes poças de água, olhos imóveis de um caudal antigo aprisionados na solidão das pedras. A mulher metia-se nessas ruínas da corrente pela altura dos joelhos, arregaçando a saia que apertava entre as pernas para que não se molhasse, e passava a criança pela água numa espécie de banho lustral: primeiro a cabeça com o seu tufo de caracóis castanhos-claros, depois todo o corpo até aos pequenos pés que se agitavam incessantemente. Podia ver-se, então, que era um menino. A sua cara saía das águas de olhos bem abertos, sem nenhum sinal de aflição, antes sorrindo, e com a língua de um vermelho vivo lambia os lábios e a região à volta da boca até encostar o corpo húmido ao peito da mãe que logo o começava a beijar na cabeça e nos ombros.
De um momento para o outro, porém, o céu turvou-se de grandes nuvens que obliteraram a luz do sol. Um bando de aves de penas eriçadas e bicos carregados de dentes veio poisar sobre os seixos do leito e beber sofregamente nas poças de água. Ao levantar voo, deixou sobre a pedras uma massa de excrementos que atraiu uma nuvem densa de insectos, obrigando a mulher a tirar o lenço da cabeça e a proteger com ele o rosto do menino.
Foi neste compasso do sonho que Josué lhe viu a cara – era Salomé. E acordou sobressaltado.
Levantou-se indisposto e veio para a rua apanhar o ar da noite. Um morcego passou-lhe sobre a cabeça num arremedo inquietante de voo e, por momentos, pensou que ainda balançava nas asas do sonho, e que nada do que via – as fachadas das casas, as copas das árvores, os muros dos quintais –, nada daquilo era fisicamente real, palpável, apenas imagens da vida reflectidas no espelho da alma, prontas a desfazerem-se à primeira luz da madrugada. E lamentou que um homem novo como ele, na força da vida, ficasse sobressaltado perante um sonho que parecia não dispor dos ingredientes necessários para se tornar pesadelo. É certo que havia os estranhos pássaros e a nuvem de insectos, ambos de certa forma ameaçadores, mas o que mais o perturbara fora a visão daquela mulher – a sua – com uma criança de tenra idade nos braços.
Josué sempre deu grande valor aos sinais do inconsciente. Durante os meses em que Salomé esteve fora de casa, sonhou uma vez com um mar que avançava sobre a aldeia até a submergir por completo, afogando-se nele as pessoas e os animais. E via os corpos sem vida a boiarem à tona de água, a serem comidos por aves necrófagas que desciam dos céus e por peixes enormes que vinham do fundo das águas com a sua gula de morte. Sentiu-se mal. Ao acordar parecia estar no prelúdio de um ataque cardíaco. Nunca mais esqueceria esse sonho mau.
O que o sobressaltou naquela visão da mulher e da criança, foi talvez o elo que estabeleceu, ainda que inconscientemente, entre o contorno do sonho e o que lhe dissera Salomé quando regressou a casa: “O menino morreu”. Tinha sido há um ano, ou pouco mais. Ele ouviu e nem questionou o que ela lhe dizia, limitando-se a aceitá-la com uma bonomia inexplicável, mas que talvez resultasse de a imaginar arrependida, destroçada pela perda do filho e carente de um arrimo certo.
Josué sabe agora, com a certeza que só os sonhos podem dar, a razão por que todos os meses se ausenta de casa a sua mulher. Leu os sinais dessa revelação naquelas imagens do leito seco do rio. Mas essa certeza é, por enquanto, algo que não se atreve a dizer a si mesmo, uma verdade que ainda não tem palavras para falar, e que nem sabe quando terá, embora esteja seguro de que elas virão um dia, lentamente, como uma maré, subindo aos poucos os degraus da alma até a cobrir por completo, tal como no sonho mau o mar cobria toda a aldeia. Será apenas uma questão de tempo. Salomé continuará a dormir na sua cama, a tratar-lhe da roupa, a cozinhar para ele, a meter-lhe o almoço e a merenda na lancheira, a beijá-lo quando chega a casa ao fim do dia e a dar-lhe novas da mãe sempre que regressa das visitas que em cada mês lhe faz. Continuará a ser sua esposa dentro e fora de casa, ninguém na aldeia dará por nada, tudo parecerá natural, dentro das normais relações entre marido e mulher, até ao momento em que a verdade revelada ganhe o poder da voz. Talvez Josué não esteja absolutamente certo daquilo que sabe. Talvez prefira ir deixando correr o tempo para que se separe o azeite da água, o certo do errado, e poder aceitar o sonho em toda a sua plenitude. Porque se há quem acredite em sonhos, há também quem veja neles não mais que um pálido reflexo da vida, uma emergência confusa e inconsequente de sentimentos que estão dentro da alma e que só obliquamente ganham o direito de expressão. Que conclusões se extraem deles? O leito seco de um rio representa a corrente existencial onde o amor se perdeu. Mas a mulher com a criança nos braços, dando-lhe banho, cobrindo-a de beijos, é uma imagem viva e poderosa do amor. Há amores mais robustos que moram para sempre no coração dos homens, enquanto outros se extinguem a qualquer momento nos lances inesperados da vida.
A madrugada adiantava-se com o seu odor subtil de orvalho e ervas. Josué sentia-se transportado numa corrente que lhe ia restituindo a calma, uma onda que o levava para fora de si, até lugares distantes em inimagináveis patamares do tempo. Foi serenamente que entrou em casa. Deitou-se ao lado de Salomé que não dera sequer pela sua ausência, e, com os olhos ainda doridos da revelação, ousou dormir até ao romper do dia.
D.E.